domingo, 28 de novembro de 2010

Coppola e o crime organizado no RJ.



Nesse domingo de sol típico de primavera, às vésperas da pré-estreia de Tetro com a presença de Francis Ford Coppola no Rio de Janeiro, a cidade encontra-se às voltas com uma guerra civil entre o crime organizado e o Estado. Diante desse cenário, minhas emoções ficaram misturas. Não consigo parar de pensar nos dois filmes que mais amo na vida, por acaso (?) ambos do Coppola, mas também não consigo mergulhar nas lembranças das inúmeras vezes que assisti Drácula de Bram Stoker e O poderoso Chefão e esquecer do que está acontecendo na cidade. Sendo inevitável lidar, ao mesmo tempo, com minha memória cinematográfica e a preocupação em relação à realidade, acabei enxergando alguma semelhança entre ambas.
Assisti Drácula com uns 14 anos de idade e lembro que fui com meu irmão ao cinema porque gostava de filmes de terror. Para minha surpresa, descobri, ao longo daquelas 2h na sala escura, que tratava-se de uma história de amor que superava o tempo e a própria morte, embora permeada pelo ódio, colorida de sangue e impulsionada por uma necessidade de vingança pela vida roubada, pelo amor não vivido em toda sua plenitude. Assustador e sedutor ao mesmo tempo. Fiquei encantada! Assistimos duas sessões seguidas apenas pagando a primeira_ naquela época se podia fazer isso. Bons tempos!
Mais ou menos na mesma época, descobri O poderoso chefão. Era véspera de Natal e enquanto minha mãe preparava rabanadas, fui me distrair assistindo à sessão da tarde. Sabe-se lá porque razão, o filme exibido naquele dia foi O poderoso chefão III. Comecei a assistir meio sem interesse e logo estava hipnotizada pela história e pelos personagens. Comentei com o meu irmão que me disse: “Você gostou desse? Precisa ver os dois anteriores!”. Não perdi tempo, fui à locadora e aluguei as fitas (!!!) do primeiro e do segundo filmes da saga Godfather (título original).
Embora não entendesse de maneira profunda o conteúdo denso da história da família Corleone, ela me marcou da maneira que só os grandes amores podem fazer: tornou-se parte da minha história e da minha vida enquanto cinéfila. Me impressiona até hoje como os personagens e a narrativa me capturam de tal forma que me surpreendo sendo cúmplice de todos os crimes e jogos de poder em nome da manutenção daquela família ítalo-americana. Por mais que eles façam parte do crime organizado, que façam dinheiro às custas da exploração e do assassinato de outras pessoas, é impossível para mim não me comover com as tragédias que acontecem dentro da própria família Corleone. A trajetória de Michael Corleone (o Godfather que orquestra os 3 filmes) é marcada por muita dor, mortes e um enorme conflito entre razão e emoção. Michael diz: “Um homem que não se dedica à família nunca será um homem de verdade” e acrescenta: “Fazemos parte da mesma hipocrisia, mas não pense que isso se aplica a minha família”. Mas, ao longo da sua atuação enquanto chefe daquela família/organização, ele mostra-se impiedoso e brutal ao lidar até mesmo com pessoas de seu próprio sangue. No fim da sua trajetória, ele lamenta: “O que me traiu, minha mente ou meu coração?” Nesse momento, acredito que ele se perguntaria ainda: até que ponto matar os inimigos protegeu ou colocou a família ainda mais em risco? Fiz o que fiz pela família ou pelo poder? Ou não foi possível separar as duas coisas?
Pensando nesses meus dois amores cinematográficos, me deparo com a realidade do Rio de Janeiro. Vidas são roubadas, sonhos se perdem, amores são interrompidos em sangue e lágrimas, assim como na história do vampiro de Bram Stoker. Facções criminosas mantem o poder do tráfico empregando armas, violência e medo, assim como as organizações mafiosas retratadas na saga da família Corleone. E, exatamente por causa desse contexto, temos pouco acesso à história das pessoas que vivem nessas comunidades controladas pelo tráfico. Mal sabemos de suas dores, de suas dificuldades, de seus medos. Assistimos como espectadores assistem a uma tela de cinema, com o distanciamento próprio daqueles que acompanham a história de um filme. Aí me pergunto: será que não deveríamos dar mais atenção às histórias das pessoas que residem nessas comunidades (não só o complexo do Alemão, mas todo tipo de comunidade carente), no lugar de focar a atenção no espetáculo do crime organizado? Porque os espetáculos duram o tempo da projeção e depois são esquecidos pela maioria dos espectadores. Talvez seja melhor deixar alguém como o Coppola retratar o crime organizado como entretenimento e a nós caberia o papel de olhar para a realidade, para aquelas pessoas que tem seus direitos cerceados pela crime e pela negligência do Estado, tendo como testemunhas, como num filme de cinema mudo, um conjunto de pessoas sem voz chamado de sociedade.

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